O CRC é um espaço de diálogo entre cristãos de diferentes sensibilidades, e entre cristãos e não cristãos.

7 de abril de 2020

Política com Caridade


Romualda Fernandes 
Paróquia de São Tomás de Aquino
13 novembro 2019 


Aceitei com o maior gosto o honroso convite, que muito agradeço, para participar e partilhar este momento com todos vós.
Não sendo especialista nem em ciência política nem em temas da religião, esta minha abordagem ancora-se, por um lado, no meu percurso enquanto interveniente na vida pública e política – junto das comunidades, reforçada mais recentemente pelo novo desafio da minha eleição pelos portugueses como deputada – e, por outro, na minha vivência sentida enquanto cristã comprometida com a minha fé.
Assim, começo por partilhar a minha história pessoal e as circunstâncias que levaram ao meu envolvimento na atividade política.
Nasci e cresci no seio de uma família fortemente marcada pela política. Aí se deu o meu primeiro contacto com a política, através do meu pai e dos amigos dele. A ligação do meu pai a atividades políticas trouxe e foi marcada por grandes dissabores à família e fez com que, durante a aminha infância e adolescência, vivenciasse um período de muito sofrimento, sobretudo devido às perseguições e prisões do meu pai e alguns familiares próximos.
Aos 13 anos os meus pais enviaram-me para Portugal, para o colégio Andaluz em Santarém, pertencente à Congregação das Irmãs Servas de Nossa Senhora de Fátima, fundada em 1923 por Madre Luiza Andaluz. Aí passei cinco anos da minha adolescência, em regime de internato. 
Durante a minha adolescência e início da fase adulta, marcadas por aqueles acontecimentos, fortaleci em mim a convicção de que não queria trilhar o mesmo caminho da política que o meu pai trilhara.
Fiz jus a esta minha convicção. A licenciatura em Direito, e depois a magistratura, pareceram-me meios adequados para fazer valer os direitos de forma justa e imparcial, e uma forma de agir em prol dos outros, deixando sempre longe as águas da política.
No início dos anos 80 do século passado, decidi ir com o meu marido para a Guiné dar o nosso contributo ao jovem país, e a primeira condição que acordámos foi não nos envolvermos na política. Vivia-se num regime de partido único que se autoproclamava “Luz e guia do Povo”. Através do exercício das nossas profissões e do envolvimento nas atividades da nossa comunidade religiosa, trabalhávamos para mudar a sociedade para melhor. Ao menos assim considerávamos.
Quis, no entanto, o destino que aquando do exercício das minhas funções como Procuradora da República Adjunta da Guiné, assistisse, sem nada poder fazer, a um processo político persecutório, no qual o mais elementar direito à vida foi violado, de forma bárbara, com a aplicação da pena capital aos opositores ao regime, sob acusação de tentativa de golpe de Estado.
É neste preciso momento, de dor e revolta, que chegamos à conclusão de que não tinha qualquer cabimento o nosso distanciamento da política e decidimos romper com ele. No fundo, a minha consciência política estava presente em cada uma daquelas vítimas que perderam a vida, e por elas e por todos os outros guineenses jurámos tudo fazer para que o Estado de Direito e Democracia Pluralista fosse uma realidade naquele País – e só a política seria o palco emergente e imprescindível para essa luta. 
Fazer política para lutar pelo respeito da dignidade da pessoa humana, no estrito respeito pelo princípio da inviolabilidade da pessoa humana, pareceu-nos que merecia todo o nosso envolvimento. Os riscos que corríamos eram imensos: desde logo o de sermos condenados, nessa altura, pela prática de um crime de traição à pátria previsto e punido pela lei penal militar com pena de morte. 
Foi neste contexto que eu e meu marido, apesar de nunca termos sido perseguidos pessoalmente, decidimos abandonar a Guiné, deixando para trás tudo que tínhamos construído, para dar início, em Portugal, a uma luta política contra aquele regime. Fizemo-la através de uma estratégia de denúncia sistemática de todas as atrocidades e violações dos direitos humanos que ocorriam naquele país, ao mesmo tempo que construímos um projeto para a implementação de democracia multipartidária e, em simultâneo, íamos apresentando aos dirigentes do país propostas base para um diálogo aberto e fraterno, conducente à instituição de um verdadeiro Estado de Direito na Guiné. 
Em 1991, com a nossa luta, forçámos o país a enveredar pela abertura ao multipartidarismo. O partido, Resistência da Guiné-Bissau “Movimento Bá-Fatá”, então liderado pelo seu fundador, Domingos Fernandes Gomes, meu esposo, pôde legalizar-se na Guiné e tornar-se a principal força de oposição, até 2000.
Perguntar-me-ão o que que tem esta história com o tema proposto “Política com caridade”? Na minha opinião tem muito, por duas ordens de razões:
Por um lado, o apelo forte e incontornável para agir, para minorar o sofrimento desnecessário infligido por um sistema político injusto e cruel, que me leva a uma tomada de posição determinada e comprometida politicamente.
Por outro, porque mudou a nossa perceção sobre forma como, enquanto cristãos, devíamos viver a política, encarando-a no seu sentido mais nobre de prossecução do bem comum.  
Foi com essa consciência e comprometimento político que, ao regressar definitivamente a Portugal em meados dos anos 1990, pelas mão do meu caro amigo José Leitão, então Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas, se dá o inicio do meu envolvimento no Partido Socialista, por via de um trabalho empenhado em prol da melhoria das condições de vida dos imigrantes que escolheram Portugal para realizar os seus projetos de vida. 
Numa reflexão de ordem doutrinal e pastoral sobre o sentido, as condições e as exigências da ação política, os Bispos de França exprimiam assim o apelo da política para os cristãos: 
A lei do amor do Evangelho não convida os homens a resignarem-se perante a injustiça, mas chama-nos a agir para eficazmente a vencer, tanto nas suas raízes espirituais como nas estruturais em que prolifera. É falsa a teologia do amor invocada por aqueles que gostariam de camuflar as situações conflituais, enaltecer as atitudes de colaboração na confusão, minimizando a realidade dos antagonismos coletivos de todo o género. O amor evangélico exige a lucidez na análise e a coragem nos afrontamentos, que permitam progredir verdadeiramente em direção a uma maior verdade(Para uma prática cristã da política, 1972)
É comum nos nossos dias a opinião de que existe uma contradição trágica entre ser cristão e ser político, ou que aos cristãos é reservada outra missão. Neste contexto, proponho agora juntar duas reflexões breves.
Por um lado, na expressão do Professor Freitas do Amaral em Uma Introdução à Política (2014), a política é entendida “como uma atividade humana, em parte do tipo competitivo, tendo por objeto a conquista e a manutenção do poder, e em parte de tipo diretivo, tendo por objetivo a governação de uma comunidade humana, com vista à realização do seu bem comum – sublinho este inciso.
Por outro ladorecordo aqui a definição de Caridade segundo o Catecismo da Igreja Católica: “a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas por Ele mesmo, e ao próximo como a nós mesmos, por amor de Deus.” Assim, a Caridade convoca-nos para ação, e em particular impede-nos de ficar indiferentes ao infortúnio dos outros, às desigualdades, à violência, à pobreza, à exclusão, ao sofrimento evitável, existentes nas nossas sociedades.
A importância da participação política por parte dos cristãos tem sido sublinhada pelo ensinamento social da Igreja, com particular insistência depois do Concílio Vaticano II, de João XXIII ao Papa Francisco, passando por João Paulo II e Bento XVI.
Na Nota doutrinal sobre algumas questões relativas ao empenhamento e ao comportamento dos católicos na vida política (2002), que olha de novo para a doutrina do Concílio Vaticano II a partir da participação exigente e séria na política e na vida pública, referia-se: 
As sociedades democráticas atuais, em que louvavelmente todos se tornam participantes da gestão da coisa pública num clima de verdadeira liberdade, exigem novas e mais amplas formas de participação na vida pública da parte dos cidadãos, cristãos e não cristãos. [...] Num sistema político democrático, a vida não poderia desenvolver-se proficuamente sem o envolvimento ativo, responsável e generoso da parte de todos, embora em conformidade de formas, níveis, funções e responsabilidades.
A política partidária, uma das formas da participação política, aberta a todos os cidadãos e cidadãs, exige a humildade de participar nos debates políticos internos e de se sujeitar ao debate contraditório e a eleições internas. É orientada para tomada de decisões e o exercício do poder, aos mais diversos níveis, para concretizar programas e projetos políticos definidos pelos participantes nos diferentes partidos políticos.
A realidade existente é marcada por situações intoleráveis, de exclusão, exploração, desigualdade, violência, de inúmeras formas evitáveis de sofrimento coletivo, que os cristãos não podem ignorar, com receio de se envolver em projetos sempre limitados.
João Paulo II conhecia bem os desafios que se enfrentavam, mas não hesitava em apelar com determinação à prática política, ao empenhamento político dos cristãos. Fá-lo na Exortação Apostólica Christifidelis Laici dizendo: 
Os fiéis leigos não podem absolutamente abdicar da participação na “política” ou seja, da múltipla e variada ação económica, social legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgânica e intencionalmente o bem comum […]. Todos e cada um têm o direito e o dever de participar na política, embora na diversidade e complementaridade de formas, níveis, funções e responsabilidades. As acusações de arrivismo, idolatria do poder, egoísmo e corrupção que muitas vezes são dirigidos aos homens do governo, do parlamento, da classe dominante ou partido político, bem como a opinião difusa de que a política é um lugar de necessário perigo moral, não justificam minimamente o ceticismo nem o absentismo dos cristãos pela coisa pública.
Permitam-me que conclua com as palavras de Bento XVI, na sua Encíclica A Caridade na Verdade:
O amor de Deus chama-nos a sair daquilo que é limitado e não definitivo, dá-nos coragem de agir, continuando a procurar o bem de todos, ainda que não se realize imediatamente, ainda que aquilo que consigamos realizar- nós as autoridades políticas e os operadores económicos - seja sempre menos de quanto anelamos. Deus dá-nos a força de lutar e de sofrer por amor o bem comum, porque Ele é o nosso tudo, a nossa esperança maior.

Muito obrigada.


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