O CRC é um espaço de diálogo entre cristãos de diferentes sensibilidades, e entre cristãos e não cristãos.

Colóquio I: Intervenção de Adel Sidarus - Cristãos no Médio Oriente Hoje

Cristãos do Médio Oriente hoje

NOTAS E ASS.

Se eu fosse copta, teria bradado aos céus do Egipto e do mundo o clima opressivo em que os coptas vivem hoje.
Se eu fosse copta, teria feito saber ao mundo a iniquidade que desde meio século impede os coptas de obter as posições políticas ou administrativas para os quais estariam habilitados.
Se eu fosse copta, teria levantado o mundo para se tornar consciente das dificuldades que os coptas enfrentem para obter uma autorização de construção duma igreja…

Paro aqui a ladainha das queixas formuladas por um muçulmano egípcio a propósito das injustiças de que sofrem os seus concidadãos coptas.[1]
Lembro que "copta" designa simplesmente um "cristão" autóctone, tendo a palavra a mesma origem que "egípcio". Ficou como distintivo da população egípcia que permaneceu fiel à sua religião, depois da chegada dos árabes muçulmanos ao Egipto em meados do século VII.
Se no Vale do Nilo não se pode falar propriamente de "perseguições", existe de facto uma opressão latente ou discriminação difusa, com surtos de violência ou atentados e até de pogroms ao sabor da afirmação violenta de fanáticos muçulmanos, praticamente impunes. Qualquer coisa de similar se passa na Faixa de Gaza, na Palestina, sujeita ao poder do partido "islamista" Hamas, de tal modo que não se encontraria ali, hoje, comunidade cristã alguma. E conhecemos obviamente os crimes hediondos cometidos na Líbia ou no Iraque, passando pela Síria nas zonas caídas nas mãos dos radicais islamistas. Se na Argélia a entrada de "missionários" é fortemente condicionada e suas actividades vigiadas, nos países do Golfo ‒ excluindo os Emiratos e um pouco o Koweit ‒ os dois até três milhões de imigrantes exógenos, não podem manifestar publicamente uma religião outra que a islâmica. E a grave sangria que conhece o cristianismo nos países árabes ou islâmicos, em geral, é sinal de uma mal-estar generalizado.

Agora, uma série de questões se coloca aqui.
Estarão os cristãos do Médio Oriente a serem “perseguidos” em particular ou são apenas vítimas privilegiadas de um surto de xenofobia político-religiosa mais abrangente?
Qual é a natureza desta praga? As suas verdadeiras causas ou motivações?
Quais são as suas ligações com a crise política que abala a região há alguns anos, senão décadas, para cá?
Finalmente, será o Ocidente dito cristão alheio ao drama em curso?[2]

Antes de tudo, uma verdade histórica muitas vezes ignorada ou subestimada, tanto pelos países ocidentais, como por muitos protagonistas árabo-muçulmanos e, infelizmente, pelos próprios cristãos, hoje rejeitados ou perseguidos: cristãos e muçulmanos, como de resto judeus…, conviveram juntos durante o milénio e meio de existência do islão! Certo com altos e baixos, ao ritmo da estabilidade política e económica, muitas vezes ferida ‒ e isto é importante! ‒ por intervenções externas intempestivas…
Daí que temos que interrogar o presente e não generalizar ou "essencializar" os desvarios do momento!

Para ilustrar aquelas dimensões de convívio, temos que lembrar que os cristãos do Médio Oriente tiveram um papel relevante nas duas épocas áureas da cultura árabe.
Primeiro, no período de elaboração da cultura islâmica clássica (Bagdad, sécs. VIII-X), ao liderarem o movimento de traduções do grego, que permitiu a eclosão das prestigiosas filosofia e ciência árabes medievais. Mais tarde, muito perto da nossa época, entre meados do século XIX e a primeira metade do século passado, a partir do Egipto e do Crescente fértil no Mediterrâneo oriental, esses cristãos participaram plenamente na conhecida Nahda árabe (Renascença/ Ressurgimento), ou seja, no processo de abertura à modernidade europeia. Neste caso até, com contributos significativos para a definição correcta e abrangente do nacionalismo árabe (não muçulmano!).
Fora desses momentos fortes, as trocas culturais, intelectuais e literárias foram constantes ao longo dos séculos. Enquanto conhecedor dos movimentos literários de ambos os lados, posso dar testemunho disso, inclusive no que que toca aos "moçárabes": os cristãos arabizados de al-Andalus…
Basta frisar as épocas de ouro da literatura copto-árabe, por exemplo, ou sírio-árabe, que surgiram entre o século XIII e XIV, apesar das guerras contra os cruzados ou as invasões mongóis…
Há que mencionar também o caso similar, quiçá mais significativo, da cultura e literatura hebraicas aqui na Península. De facto, a partir de Córdoba, Granada ou Sevilha, nos séculos X-XIII, o hebraico foi recuperado e revivificado, tornando-se uma língua científica e filosófica com certo universalismo, o que lhes faltava até então.
~ { ~

Então o que aconteceu nos últimos tempos que pudesse explicar a negação deste passado comum e o descalabro do momento presente, com o seu rasto de violência, de antagonismo e de exclusão? … de deslocados e refugiados e de êxodos à larga escala, levando à diminuição drástica do número de cristãos nos territórios árabes, quando não do apagamento da sua memória em localidades onde a sua fé nascera e se desenvolvera há quase dois mil anos? O caso de Mossul é emblemático a esse respeito...[3]

Como pano de fundo, há que realçar, ao cabo de tudo, a profunda crise do islão na senda da colonização europeia (cristã!) dos últimos dois séculos. Acrescente-se a isso a fragmentação do Império otomano (depositário do “califado” mais ou menos virtual…), depois da Primeira Guerra Mundial. Ou o novo imperialismo económico, militar e cultural dos Estados Unidos da América, depois da Segunda: uma nova realidade ficada particularmente patente na região por causa dos interesses petrolíferos e hegemónicos. Mais uma verdade histórica disfarçada ou ocultada!
Na Península arábica, berço original do islão, ao invés dos outros países, os reinos ou emirados, criados e apoiados pelos Estados Unidos e antigas potências coloniais…, os beduínos árabes conheceram um desenvolvimento sem par.
Além dos petrodólares e da embriaguez e soberba da riqueza, impôs-se ali, sob a batuta do grande irmão saudita, uma corrente doutrinal particularmente conservadora e retrógrada: o wahabisma (do nome do seu predicador ‘Abd al-Wahháb) ou salafismo, que pretendia "mimetizar" os antepassados ou salaf, ou seja os primeiros muçulmanos da terra, os seguidores e companheiros do Profeta Muhammad. Fez-se tábua rasa de treze séculos de islamismo cosmopolita e de civilização árabo-islâmica com pendor universalista.
Por outro lado, deve-se dizer que a vida tribal admite mal toda a alteridade, religiosa ou outra, dentro da sua orgânica interna. E tribos cristãs ou judaicas já tinham praticamente desaparecido do horizonte do Deserto arábico, depois da época do fundador do islão, configurando uma paisagem monolítica milenar.
Mercê das suas fabulosas riquezas, estes novos estados expandiram o seu modo de vida tribal (!) e a doutrina da referida escola islâmica fora da Península ‒ e muito para além dos territórios dos países da Liga Árabe...
Além dos numerosos trabalhadores oriundos destes países que regressam às suas terras “modelados” de novo, temos as universidades e escolas religiosas desses estados que atraem os muçulmanos dos vários cantos do planeta (!), muitos deles tornando-se mestres nas instituições educativas do seu próprio país ou imames nas mesquitas ‒ instituições essas apoiadas financeiramente ou construídas de raiz pelos Reis de Petróleo.

Entretanto, as "novas" ditaduras árabes instaladas (geralmente apoiadas pelas potências ocidentais...), já corruptas e sem fôlego ideológico e patriótico, asseguravam a sua sobrevivência deixando o campo livre à “islamização” de base e terra a terra das respectivas sociedades. As camadas populares tornaram-se, pouco a pouco, permeáveis à ideologia “islamista” (do islão político e exclusivista) e ao seu slogan simplista: “o islão é a solução” ‒ o islão e a sua lei (xaria) medieval…

Se somarmos a isso: o arrastar do conflito israelo-palestino, tornado indiferente à comunidade internacional; a guerra Irão-Iraque instigada pelos próprios americanos e que facilmente se revestiu de conflito religioso entre sunitas e xiitas; as sucessivas intervenções militares dos mesmos americanos e seus aliados, no Iraque, na Somália ou no Afeganistão (aqui, depois da vergonhosa mobilização dos “jihadistas” árabes na guerra contra os russos…); as guerras civis na Bósnia, na Chechênia e até na Argélia…, não é de espantar o florescimento do islamismo radical jihadista (vertente extrema e militar do salafismo), com laivos de fascismo.
É consubstanciado hoje por fenómenos como os dos Talibãs (Afeganistão e Paquistão); dos Shababs (Somália); do Boko Haram (Mali, Nigéria e toda a África ocidental); do Hamas (em Gaza) ou da célebre Al-Qaeda e seus satélites. Até às novas denominações surgidas na senda das guerras civis no Iraque e na Síria, as quais desembocaram no auto-denominado Estado islâmico ou Califado (Daesh segundo o acrónimo árabe) e seus adeptos espalhados por todo o lado…

Estas ondas de guerras, crimes, atentados ‒ deve-se bem frisar ‒ não afectam apenas os cristãos, sejam eles do Médio Oriente ou da Europa ou América. Atingem também outras minorias religiosas, como sejam os yazidis (no Iraque), por exemplo. Mas do mesmo modo os muçulmanos xiitas, no Iémen ou no Iraque (guerras civis internas) ou outros muçulmanos oponentes, incluídos os países ou povos que não se sujeitam aqueles radicais e os seus diktats: lembro os curdos no norte da Síria ou do Iraque. Na Argélia, onde a guerra civil que estalou há mais de duas décadas, na sequência da anulação das eleições que iriam levar ao poder o FIS (Frente Islâmica de Salvação), causou entre 120 e 130 mil mortos! E na Turquia ultimamente, o regime afastou da vida nacional: militar, judicial, educacional, comunicacional ou empresarial, centenas de milhares de cidadãos…

Obviamente, no meio de tanta violência e autodestruição, de perca do sentido do bem comum nacional ou regional, não é de espantar que os cristãos se tornem vitimas privilegiadas, por serem grosseiramente amalgamados aos "infiéis" e "ímpios" cristãos ocidentais, aos eternos "cruzados"…

Adel Sidarus (Évora)
(asidarus@gmail.com)


[1] Texto integral em inglês em <http://www.heggy.org/If%20I%20Were%20a%20Copt.html>. Versão francesa em <http://www.mideastweb.org/copt.htm>. O autor do presente ensaio escreve de acordo com a ortografia tradicional.
[2] Inspirou-me nestas linhas de dois artigos publicados na Communio 31 (2014), 505-8 e na Didaskalia 46 (2016), 207-20, ambas editadas na Universidade Católica e onde se poderá encontrar uma bibliografia apropriada.
[3] Vamos ver se a cidade irá ser recuperada pelo Estado iraquiano e se os antigos habitantes cristãos irão voltar à sua terra num clima de estabilidade, paz e justiça.

Sem comentários: