A
decisão do Papa Francisco de publicar o documento preparatório do Sínodo dos
Bispos sob a forma de um inquérito, teve repercussão mundial. Este fenómeno por
si só encerra um vasto conjunto de questões, motivo pelo qual nos encontramos
hoje a reflectir sobre alguns dos seus aspectos.
Como
simples observadora, procurarei sintetizar, em curta intervenção, dois planos que
se interpenetram.
São
eles: o contexto em que surge a iniciativa do Papa. O alcance de um Inquérito centrado
no tema da Família.
1-
O contexto em que surge a iniciativa do Papa
Após
a renúncia do Papa Bento XVI, percepcionada como imagem simbólica de um modelo
eclesial esgotado, seguiu-se a percepção de que o Papa Francisco dava início a
um tempo novo. A auto-dessacralização da figura pontifícia colocando-se num
plano de igualdade fraterna, em comunicação aberta e humanizada, configuraram o Papa argentino
com uma nova era na Igreja Católica. A inusitada proximidade papal provocou desconforto
em alguns sectores, garantindo redobrada audiência de um público conquistado
pelo discurso simples e assertivo do Papa, bem como pelo seu à-vontade em
conviver com realidades circundantes, centrando as suas mensagens no Evangelho
e na misericórdia de Deus, em termos existenciais.
De
surpresa em surpresa, a publicação do Inquérito que o Papa posteriormente decidiu
alargar a toda a Igreja, convidando o Povo de Deus a responder e a participar,
veicula também uma mensagem. Demonstra que a originalidade do modo de actuar de
Jorge Bergoglio não se confina a uma personalidade simpática ou à sua cultura e
biografia, sendo objectivamente expressão de uma nova ecleseologia.
A
proposta de um inquérito, tão concreto e detalhado, destinado a conhecer e a
avaliar (em vez de doutrinar) o que todos os outros possam pensar
(inclusivamente os leigos, principais destinatários da acção pastoral exercida por
padres e bispos nas paróquias e nas dioceses), parece indicar que o actual pontificado
decidiu reabilitar o sentido e a função do próprio Sínodo, uma instância que
foi criada para garantir o exercício efectivo da colegialidade dos Bispos, a sua
co-responsabilidade e participação no governo da Igreja.
A
coragem renovadora do Papa Francisco corresponde, actualmente, à coragem do
Papa João XXIII quando 50 anos atrás, decidiu, de motu próprio, convocar um Concílio Ecuménico para conhecer a
realidade do mundo contemporâneo e, a ele, adequar a missão da Igreja.
O
Inquérito do Papa Francisco centrado na Família, que se espera seja discutido
pelos representantes de todas as Conferências Episcopais no próximo Sínodo, corresponde
a maior urgência ainda, quer pelo agravamento das situações, quer pela
necessidade de concretizar o que ficou por fazer, devido à entropia do sistema
eclesiástico, e corrigindo um percurso que, em vez de progredir na conversão daquele,
contribuiria para a burocratização da Igreja e para a regressão a um governo mais
centralizador e securitário.
Estamos
assim perante uma decisão profética do Papa Francisco que simbolicamente inicia
o caminho para a realização efectiva das mais importantes orientações
preconizadas pelo Concílio Vaticano II: a passagem da concepção piramidal da
Igreja à concepção da Igreja como povo de Deus abrindo as portas à escuta das
comunidades e à realização da Comunhão.
2-
O alcance de um Inquérito centrado na Família.
Exceptuando
as Encíclicas papais, de um modo geral, o tema Família tem sido entendido como um
tema lateral ou secundário, um capítulo específico e circunscrito da sociologia
e uma alínea da pastoral. Referenciado a modelos bíblicos e rurais, associando o
conceito de ordem natural à imagem
simbólica da Sagrada Família, o discurso doutrinário e pastoral apresenta um
conceito simultaneamente determinista e idealista de Família, como uma forma estanque
à qual se deve conformar toda a realidade humana, apesar da sua diversidade.
Nos
termos em que é promovido o próximo Sínodo, e no contexto de uma ecleseologia mais
participativa, a questão da Família poderá adquirir um novo sentido e maior densidade.
Um sentido mais social e humanizado, e uma concepção integradora das várias
dimensões da existência humana.
O
Papa Francisco tem demonstrado que a sua prioridade é ir ao essencial: Jesus
Cristo e o testemunho da misericórdia de Deus na existência das pessoas
concretas que nascem, vivem e morrem na complexa realidade do mundo que é
basicamente constituído por famílias de inúmeras e diversíssimas culturas.
Estas são o terreno onde se cruzam todas as situações possíveis, e onde coexistem
o melhor e o pior da natureza humana; são o primeiro palco de todos os
conflitos que marcam as relações pessoais e sociais. É nelas que evoluem as
mentalidades e se definem e transmitem as culturas e os valores. É através das famílias
que se transmitem a fé e a cultura cristãs, as práticas religiosas, ou a ausência
delas.
A
diversidade dos temas e das questões de ordem antropológica e sócio-cultural
que percorrem o Inquérito, leva a concluir que a questão da Família é básica e
não transversal, pelo que deveria constituir o fulcro, e não uma alínea, da
acção pastoral.
O
Inquérito do Papa Francisco é um instrumento para avaliar o grau de prioridade
e de atenção pastoral dispensados pelas Igrejas locais às questões da família,
e às famílias concretas que, na sua diversidade humana, cultural e religiosa, são
células base da sociedade e células base da própria Igreja.
A
extensão e dureza do Inquérito propõem aos Pastores um verdadeiro exame de
consciência sobre a acção desenvolvida e, principalmente, sobre os seus
efeitos.
Propõe
uma avaliação dos processos de comunicação do pensamento da Igreja, dos
princípios da doutrina moral e dos conceitos relacionados com um ideal de
família cristã; e a avaliação dos métodos e dos processos de comunicação
daquelas doutrinas, assim como a resposta que é dada pelos fieis e pela cultura
das sociedades envolventes aos ensinamentos da Igreja.
O
Inquérito veio permitir que, pela primeira vez, os destinatários da pastoral dirigida
ao matrimónio e à família pudessem fazer a sua própria avaliação em questões que
lhes dizem respeito.
Impor
a necessidade de uma discussão aberta na Igreja sobre temas tão realistas e
sensíveis, como o dos divorciados e da contracepção, da homossexualidade, da
adopção e da união de pessoas do mesmo sexo, é um desafio que poderá contribuir
para que as instâncias eclesiásticas desçam das alturas e aterrem na
humanidade, enfrentando colegialmente, e em liberdade evangélica, as questões que
se apresentam.
A
responsabilização dos Bispos pela difusão do Inquérito nas suas igrejas
particulares, vem na sequência dos sinais que indiciam o desejo de Francisco de
provocar uma conversão nos métodos e nos modos de relacionamento intra-eclesial.
Haverá muitas diferenças no grau de empenho naquela difusão, na possibilidade
de participação nas capacidades de resposta, nas metodologias de recepção e de estudo
de respostas ao Inquérito. Aquelas diferenciações, e o modo como poderão reagir
alguns pastores a respostas e observações dos fiéis, serão indicadores importantes
do estado e da vida das comunidades.
Na
Diocese de Lisboa o Inquérito foi publicado pela Net em forma de questionário
detalhado e por vezes parecendo induzir respostas, particularmente no capítulo
em que se evidenciam algumas obsessões referidas pelo Papa. A divulgação do site possibilitou participações de dentro
e de fora do país, mas acentuou a marginalização da maioria que não possui
aquele meio de informação e comunicação.
A
nível local ou internacional, será irrealista esperar grandes resultados no que
se refere à participação dos fiéis no Inquérito, aos métodos de análise e de seriação
das respostas, e da síntese das respectivas conclusões. O mais importante é o
sentido do Inquérito em si mesmo e a sua realização num contexto eclesial
fechado, em que as comunidades nunca foram autorizadas a pensar ou estimuladas
a intervir, nem mesmo em questões próprias da vida dos leigos e das famílias.
O
Papa mostra-se empenhado numa evangelização da Igreja a todos os níveis. Uma
evangelização verdadeiramente evangélica nas palavras e nos gestos, que desafia
os legalismos do sistema e das estruturas eclesiásticas. Ao decidir alargar o
seu inquérito, o Papa Francisco apela ao comum sentir dos fiéis, à opinião
pública cristã e não cristã que o segue através dos media e o apoia nas redes sociais; apela a uma conversão, necessária à própria
sociedade, enquanto revela o sentido da missão da Igreja no mundo e torna assim
credível o seu anúncio de Jesus Cristo como Salvador da humanidade.
Emília Nadal,
15 de janeiro de 2014
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