No plano eclesial
Tinha decorrido uma década sobre o fim do Concílio Vaticano II e embora a transposição da doutrina conciliar para a Igreja em Portugal fosse lenta e titubeante, havia, no entanto, sinais de mudança, sobretudo ao nível da tomada de consciência do lugar dos leigos na Igreja ou no entendimento das relações da Igreja com o mundo. Sentia-se a necessidade de chegar junto dos nossos contemporâneos com uma linguagem mais inteligível. Era chegado o tempo de anunciar o Evangelho de uma maneira nova e de derrubar as muralhas que isolavam a Igreja do mundo. Era o tempo de os leigos assumirem a plenitude da sua condição de membros da Igreja, fiéis de pleno direito, e de assumirem as suas respectivas responsabilidades.
Refiro, por memória, alguns sinais desta mudança e da tentativa de vivência do espírito conciliar:
- Diocese de Setúbal e o seu Bispo Manuel Martins;
- Capela do Rato, como lugar de celebração da fé e de experiência comunitária;
- O Movimento dos Cristãos para o socialismo e os encontros que se iam realizando em vários locais, com a cooperação de algumas Congregações Religiosas femininas;
- A constituição de algumas Comunidades de base e o impacto da teologia da libertação (Experiência da Lixa, por exemplo);
- Equipes de evangelização, constituídas sobretudo por religiosas na Margem Sul;
- Dinâmicas de Acção católica, nomeadamente nos movimentos agrários, operários e universitários.
- (…)
No plano sociopolítico nacional
O facto mais relevante era a revolução de 1974 e as expectativas criadas, mas também os temores que já eram larvares depois do 11 março 1975.
Daqui decorrem:
- A liberdade como valor generalizadamente partilhado;
- O sentido de mudança e de inovação com a correspondente determinação de o viabilizar;
- Os planos de alfabetização e educação permanente em que muitos cristãos se envolveram.
Neste contexto eclesial e sociopolítico, ocorre um facto marcante que viria a ter repercussão positiva na génese do CRC.
Refiro-me ao encerramento do ISET, o Instituto Superior de Estudos Teológicos, criado pela Associação dos Institutos Religiosos de Portugal, com vista a proporcionar uma formação teológica de nível superior aos religiosos e religiosas das várias Congregações.
A abertura da Faculdade de Teologia da UCP e o objectivo de nela concentrar a formação teológica de religiosos/as e clérigos foi o argumento usado pela Hierarquia (Conferência Episcopal) junto do Núncio Apostólico que, por sua vez, pressionou a Associação dos Institutos Religiosos proprietária do ISET no sentido do seu encerramento, o que veio a concretizar-se.
Cabe lembrar que o ISET era, ao tempo, o único lugar em que se praticava a investigação e o ensino de uma teologia aberta ao pensamento conciliar e que era frequentado por um número significativo de religiosas e religiosos.
Com o encerramento forçado do ISET, alguns dos seus professores passam para a então recém-criada Faculdade de Teologia, mas não todos. Assim, ficaram sem emprego os professores teólogos, Luís França, Bento Domingues, Raimundo Oliveira, José Ramos, entre outros.
Concomitantemente, e como já anteriormente referi, um conjunto de leigos vinha sentindo a necessidade de colmatar o défice de uma boa formação teológica aberta ao pensamento conciliar, lacuna que vinha de um passado remoto, mas que os novos desafios suscitados pelas mudanças políticas ocorridas no País tornavam, naqueles anos de meados de setenta, ainda mais urgente.
A nova Faculdade de Teologia, entretanto criada na UCP, não dava garantias de vir a proporcionar a desejada formação. O encerramento do ISET constituía, só por si, um mau presságio e os professores discriminados no ingresso dos quadros da UCP constituíam um incentivo a que os leigos, já consciencializados da necessidade de melhor formação teológica, se mobilizassem para impedir que se interrompesse a corrente de saber que o ISET proporcionava.
A criação do CRC surgiria com objectivos de educação permanente da fé e, do mesmo passo, com a preocupação solidária de dar emprego aos professores demitidos.
Compreende-se, assim, que as primeiras iniciativas do CRC consistiram na organização de cursos de duração semestral sobre diferentes temáticas de formação teológica, cuja orientação foi confiada aos ex-professores do ISET a que outros vieram juntar-se, como foi o caso do José Mattoso o do João Resina.
5.Estamos agora em condições de lembrar os objectivos específicos do CRC e nada melhor do que recorrer aos seus estatutos.
Como bem se diz nos documentos matriciais: O CRC assume-se como um espaço de diálogo entre cristãos de diferentes sensibilidades e entre cristãos e não-cristãos.
Gostaria de ressalvar que, desde o início, o CRC procurou afirmar e praticar uma dimensão ecuménica bem como uma abertura de diálogo com não-cristãos.
Por outro lado, importa relembrar que o CRC preservou sempre uma natureza laical: criado por leigos e por leigos dirigido, mantendo com a hierarquia uma relação de confiança, ainda que nem sempre fácil, mas a que o Patriarca de Lisboa correspondia com uma atitude de compreensão e alguma benevolência e expectativa.
O que causava suspeita em alguns meios eclesiásticos era o facto de se tratar de uma iniciativa de leigos, criada ao abrigo da lei civil, sem qualquer tutela de assistente religioso, que congregava colaboradores de indiscutível prestígio no âmbito das Ciências religiosas, mas fora do enquadramento da UCP, que ousava agir ao arrepio do que fora o objectivo do encerramento do ISET e que era mantido por meio dos contributos financeiros dos associados.
6. O que fazia o CRC dos primeiros tempos?
Já referimos os cursos de duração semestral. Estas iniciativas visavam dar resposta a uma das finalidades do CRC “criado para trabalhar activamente na educação permanente da fé”. Vale a pena deixar por memória os temas dos primeiros cursos. Ver Reflexão Cristã, nº7.
Para além dos cursos, organizavam-se conferência e colóquios para públicos mais vastos, dando, assim, cumprimento à finalidade de ser presença na sociedade e na cultura contemporânea. Cf. Ibidem.
Em todas estas iniciativas, perpassam como preocupações permanentes:
- o aprofundamento da identidade do cristianismo e da vivência cristã no mundo contemporâneo;
- a relação da Igreja com o mundo e o papel dos cristãos na transformação das sociedades na construção da justiça e da paz;
- a preocupação de unidade ecuménica;
- o aprofundamento das fontes bíblicas;
- o encontro da fé com o pensamento contemporâneo, designadamente com o marxismo.
Havia também encontros de fim-de-semana, para associados e amigos, dedicados à reflexão e à oração (Encontros de Sassoeiros, no Mosteiro das Irmãs Beneditinas), integrados na celebração dos tempos litúrgicos.
De entre as actividades iniciais do CRC, merece particular destaque a publicação do seu Boletim/Revista, a Reflexão Cristã, publicação que, passados estes 40 anos, continua a editar-se, graças à dedicação dos seus directores e colaboradores. Neste momento, cabe deixar uma palavra de homenagem ao Germano Cleto que foi um dos seus mais dedicados colaboradores.
A Revista, cujo primeiro número saiu em Maio 1976, constitui hoje um repositório de textos sobre os mais variados temas de reflexão teológica, de aprofundamento da fé e da relação dos cristãos com o mundo. Uma análise retrospectiva sistemática permitirá ao investigador aperceber-se da evolução das temáticas principais de cada época, como também da espinha dorsal de preocupações que as atravessa.
De destacar, ainda, o cuidado com uma informação bibliográfica de actualidade, tanto mais relevante quanto, na altura dos primeiros números, não era fácil o acesso às novidades bibliográficas.
A Revista mantinha também uma secção permanente de testemunhos o que permitia acompanhar as práticas da renovação eclesial e da evangelização em curso no terreno.
Em síntese, veja-se, a título de exemplo, as temáticas dos 10 primeiros números da Reflexão Cristã:
Nº 1 - Abril - Maio 76 – Os cristãos e a teologia
Nº 2/3 - Junho - Setembro 76 - Identidade cristã
Nº4 - Outubro - Novembro 76 - Evangelização I
Nº 5 - Dezembro 1977- Evangelização II
Nº 6- Janeiro - Março 77 - A tolerância e a liberdade dos cristãos
Nº 7 - Abril-Junho 1977 – Educação permanente da fé
Nº 8 - Julho-Outubro 1977 – Novos rostos da Igreja
Nº 9/10 - Novembro-Dezembro – Comunidades cristãs
7. Não queria terminar esta reflexão sem deixar uma sugestão: está na altura de incentivar algum investigador/a a trabalhar os arquivos do CRC e a preparar um estudo científico sobre o contributo do CRC para a renovação da Igreja e a sua presença na sociedade portuguesa. Para além da consulta das actas e dos programas de actividades, a análise criteriosa do conjunto das publicações fornecerá pistas interessantes para pensar o catolicismo em Portugal.
8. Uma palavra final de agradecimento a todos os associados/as e colaboradores/as que se mantiveram fiéis ao espirito do CRC e souberam dar-lhe corpo ao longo dos últimos 40 anos. A este propósito, penso que é justo uma palavra especial de gratidão à Cristina Clímaco e ao José Leitão pela sua perseverança e pelo dinamismo que têm trazido à vida do CRC. A realização deste encontro com que se inicia a comemoração do 40º aniversário do CRC é uma boa prova.
Abril 2015
Manuela Silva
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