Era já noite na praça de S. Pedro. Uma multidão imensa esperava para ver o novo Papa. Finalmente apareceu e num gesto surpreendente Francisco inicia o seu pontificado com o pedido de uma bênção ao povo ali reunido. E naquela praça desceu um silêncio profundo e um recolhimento inesquecível. O papa ousa inverter a situação, uma vez que todos os crentes ali presentes esperavam a sua bênção e devolve ao Povo de Deus a possibilidade de abençoar o seu pastor maior. Intuí, nesse momento, que estávamos perante uma ruptura no rosto habitual da Igreja de Roma.
Francisco tem sido perfeitamente eloquente pelo seu estilo de vida e pelo modo de se relacionar, pela densidade humana, proximidade procurada, pela alegria, pela particular solicitude com os pobres. E ao dizer-se, explica a Igreja que deseja.
O primeiro texto oficial do papa Francisco é uma exortação, uma convocação, um apelo e um incitamento, um desafio desassombrado. É esse texto que nos reúne nesta tarde. Numa situação complexa da vida da Igreja convida todo o Povo de Deus para não se distrair com o que o enreda, mas para se virar para a sua vocação primeira – ser Povo em missão.
Fui particularmente sensível ao facto desta Exortação ser escrita na primeira pessoa, negando em estilo distante e impessoal. Muitos parágrafos começam por exprimir desejos e sentimentos do Papa: convido, penso, sonho… É um homem que se expõe e fala diretamente à sua gente. Todo o texto vem perpassado pela alegria, pelas categorias do encontro, da proximidade, da misericórdia, da centralidade dos pobres, da beleza, da “revolução da ternura” e da “mística do viver juntos”.
E isto é novo. E agarrou-me logo desde o início.
E o entusiasmo com que me detive na sua leitura e releitura trouxe-me à memória impacto que tiveram os notáveis documentos conciliares de carácter teológico e pastoral que foram as Constituições Lumen Gentium e a e Gaudium et Spes. Estes dois textos foram verdadeiramente marcantes, porque era a Igreja a fazer doutrina sobre si própria e a estabelecer teologicamente a articulação entre a Igreja e o mundo, enquanto realidades inseparáveis. Há 50 anos, como eu estudei, anotei, sublinhei estes documentos…a ponto de ficarem completamente ilegíveis. Agora o entusiasmo foi reacendido, apesar das diferenças de conteúdo e de estilo dos documentos que lhes conferem identidades próprias.
A Exortação que temos nas mãos começa assim:
“A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo renasce sem cessar a alegria. Quero com esta exortação dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria”. Aqui está a síntese de toda a exortação. A alegria é uma das palavras-chave. A alegria do encontro com Jesus não engana e é sinal visível de um encantamento. Nasce da certeza de um amor primeiro e renasce em permanência de uma confiança que funda a relação viva, sempre em aberto e que se cuida quotidianamente. Como escreve Carlos Maria Antunes “ a chave está no alimento de uma espiritualidade centrada no encontro”.
Mas para Francisco a alegria mana também do próprio acto de evangelizar. É a alegria com efeito de boomerang. Francismo dedica uma série de parágrafos áquilo que chama a doce e reconfortante alegria de evangelizar.
E que afastados andamos do elogio da alegria, da afirmação da nossa alegria! Li há tempos um texto de Miguel Esteves Cardoso que diz “a alegria tem uma vergonha que é só dela e que é malcriado proclamá-la. (…) Parece existir, no contexto existencial, uma obrigação para com a tristeza que não destoe do mau estado do mundo e do sofrimento humano”. Ora bem sabemos que a compaixão profunda com o sofrimento no mundo é compatível com uma alegria que nos transcende e que nos é dada a partir de um inexplicável encontro com Jesus.
José Matoso considera, ao comentar esta exortação do Papa, que a alegria deve ser “identitária” e que Francisco propõe que se viva essa alegria, “a fazê-la nascer ou renascer nos corações, torná-la autêntica, invasora, comunicativa, irresistível, radical, estrutural, luminosa, perspicaz, pacífica, fecunda”.
E são inúmeros os cristãos que nos deram e dão o testemunho de que a experiência cristã é antes de mais um evangelho, feliz, portador de felicidade e de esperança, um caminho de vida cujo horizonte é uma terra onde não haverá mais pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. E o Papa Francisco exorta os evangelizadores a uma vida transfigurada pela presença de Deus e insiste que é preciso cultivar um espaço interior que dê sentido ao compromisso missionário. Assim, apela à oração e à contemplação. E declara “uma pessoa que não esteja convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não convence ninguém.” Mas adverte que toda a evangelização depende em definitivo da acção misteriosa do Ressuscitado e do seu dinamismo.
O papa convoca-nos para fazer comunitariamente o que nenhum de nós pode fazer sozinho - embora o compromisso pessoal tenha que estar sempre presente: procurar acender o fogo no coração do mundo.
E Francisco explica que o entusiasmo da evangelização funda-se na convicção de que existe em todas as pessoas, mesmo que inconscientemente, a procura de uma notícia que dê resposta às suas necessidades mais profundas. Existe nos nossos contemporâneos o anseio de um sentido inspirador e último para a existência. Mas o Papa acrescenta que esta convicção é sustentada pela experiência própria do cristão de que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não o conhecer, descansar nele ou não o poder fazer. Se existem em nós estas convicções então há que fazer eclodir o Reino de Deus entre os homens – uma realidade concreta no espaço das relações humanas, da história e do mundo. E a memória agradecida faz emergir a alegria de evangelizar.
De que se trata quando falamos em evangelização? O Papa adverte que não é qualquer especie de proselitismo. E cita João Paulo II para reafirmar que “não pode haver verdadeira evangelização sem o anuncio explicito de Jesus como Senhor” e que “o anuncio da morte e ressureição de Jesus Cristo há de ser a prioridade absoluta”. Francisco diz-nos que todos somos chamados a dar o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida. “ O que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é que deves comunicar aos outros”
Contudo o Papa refere inumeras vezes nesta Exortação aquilo que se pode considerar o anuncio implícito. Ou seja: todo o bem, toda a beleza que são deixados no mundo; toda a compaixão, toda a companhia, todo o acolhimento, toda a ternura que toca qualquer homem ou mulher, são modos de anunciar Deus.
Foi-nos dito que somos um Povo para todos. E que a Igreja é por essência missionária. Francisco escreve: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo actual que à autoperservação”.“Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças”.
Este é o desafio para sermos uma casa de porta escancarada. Uma Igreja em saída. Isto exige uma impaciente renovação no interior da Igreja propiciada por uma ampla e permanente conversa entre os cristãos no interior das comunidades e das comunidades entre si. Conversa significa dar voltas com. Temos muito para conversar se aceitamos esta provocação do Papa. Temos muito para discernir se queremos iniciar este processo de saída. Saída de onde? Saída para onde? O que deixar para trás neste caminho? O que não podemos de modo nenhum deixar cair? Penso que talvez antes de mais seja necessário uma reflexão muito limpa sobre o que nos tem inibido de viver esta dimensão da nossa identidade cristã. Que conceitos, que preconceitos, que teologia, que perspectiva pastoral, que inibições nos têm atado, que medos nos assaltam, que confusões nos atrapalham?
Algumas coisas são certas: há que assumir por inteiro e enquanto Povo de Deus a nossa vocação profética e sacerdotal. Há que abandonar o status quo e dar corda à criatividade. Há que abandonar as práticas de exclusão e as dramatizações da culpa. Há que desenvolver a compaixão não como um co-sentimento de cima e de fora, mas como a percepção do sofrimento dos outros no qual se toma parte e que compromete. Há que não embarcar no novo só porque é novo, mas criteriosamente optar por aquilo que pode tocar os nossos comtemporaneos sem abandonar a dimensão do mistério, na fidelidade a Jesus e à sua proposta. Por onde vamos? Não sabemos.
Michel de Certeau, refere que em tempos de crise são necessárias “rupturas instauradoras” para que a vida nova nasça das ruínas. Talvez tenha razão. Com a nossa indignação e indagação proféticas percebemos que tudo pode ser diferente.
Evangelizar em que contexto? Que mundo é o nosso? Francisco , no capitulo II da Exortação diz-nos que quer referir ainda que brevemente este contexto onde o anuncio do Evangelho se faz. Porém, imediatamente refere que não compete ao papa oferecer uma análise detalhada e completa da realidade contemporanea e anima as comunidades locais a fazerem-no. O mundo é tão grande e vário que todo o diagnóstico que não for focalizado corre serios riscos de falta de rigor. Mesmo assim o Papa aponta alguns aspectos da realidade que considera poderem enfraquecer ou deter a dinâmica missionária da Igreja, vendo neles desafios que havemos de ter presentes.
Respiguei no texto algumas desssas circuntâncias detetadas pelo Papa:
- a precaridade do dia a dia em que vivem tantos homens e tantas mulheres, o desemprego que leva ao medo e ao desespero, a cultura do descartável;
- a idolatria do dinheiro, as perversões da economia do mercado, a especulação financeira, a ambição do poder, o jogo da competividade e a lei do mais forte;
- a desigualdade social e a exploração em que as pessoas são consideradas sobras e resíduos;
- a corrupção ramificada, a deteriração da vida urbana, as agressões ao meio ambiente;
- e toda a negação da primazia do ser humano.
E Francisco não pode ser mais assertivo quando escreve: “Alguns comprazem-se em culpar dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução numa “educação” que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos veem crescer este cancro social que é a corrupção profundamente radicada em muitos países”.
O papa vê também na cultura actual muitos aspectos que dificultam uma abertura ao anuncio de Jesus. São eles:
- os ataques à liberdade religiosa, os fundamentalismos e o secularismo que pretende reduzir a fé ao ambito do privado e do íntimo;
- a indiferença relativista relacionada coma desilusão e a crise das ideologias, o império da verdade subjectiva, o individualismo reinante e o relativismo moral;
- o culto do que é exterior, imediato, vísivel, rápido, superficial, provisório e a fragilidade dos vinculos inter-pessoais.
É com este caldo social e cultural que temos de nos confrontar não como soldados armados para a guerra, mas com humildade e ousadia. Francisco diz-nos que o devemos fazer sem demora, sem repugnância e sem medo, afugentando aquilo que chama o deveriaqueísmo, ou seja apontando o que se devia fazer mas ficando de fora, dando palpites sem meter as mãos na massa. É-nos pedido que tomemos iniciativas ponderadas, é-nos pedido primeirar e ousar sair.
Há que permanecer apropriados ao de onde somos chamados.
Não sabemos os contornos dos caminhos que havemos de construir,mas vamos a tatear espaços, a experimentar linguagens, a converter o coração, a entrar numa fase nova desta aventura que só acabará quando Deus for tudo em todos.
Conceição Moita
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