Cultura da
beleza, do dom e da gratuidade
Conferências de
Maio – 2015
Ao preparar esta intervenção, constatei que me
estava a orientar essencialmente para dois ou três temas que correspondem a
domínios onde a minha experiência pessoal me diz que há dificuldades sérias de
fazer valer uma cultura da beleza, do dom
e da gratuidade.
Desde logo, o trabalho: sendo professor
universitário, sou sensível ao tema do trabalho, porque a minha tarefa depende
muito da forma como outras pessoas (os alunos) vivem o trabalho e como lhe dão
(ou não) sentido.
Também quis falar sobre a forma como é patente, e
talvez objecto de crescente indiferença, o egoísmo na vida social e em
particular nas relações familiares. Ligo isto, também, ao tema do valor da
vida, à importância da fidelidade, não como abstracção, mas como realidade de
todos os dias, e à forma como tudo isso se relaciona com o tema da pertença a
uma cultura.
Procurarei tornar claras as relações que me parece
que existem entre todos estes temas, entre si e com o tema geral de que me cabe
falar; esta comunicação decorre, assim, em temas dos quais a actividade do CRC
muito se tem feito eco, ao longo destes 40 anos da sua existência; faço aqui,
desde logo, essa justa homenagem, e sublinho que é com muita honra que procuro
contribuir para continuar essa reflexão.
Começarei pelo tema do trabalho. No seu livro
“Alegrias e Tristezas do Trabalho” (D. Quixote, 2009), Alain de Botton dedica
um capítulo à actividade do fabrico de biscoitos, onde procura perceber, entre
outras coisas, o processo que levou à concepção e produção de uma nova marca de
biscoito para ser lançada no mercado. Aplicando a sua combinação típica de
profundidade e leviandade, o autor revela-nos elementos curiosos. Um
responsável, depois de confessar que não tem quaisquer conhecimentos de
pastelaria, revela que o processo, por si dirigido, demorou dois anos e custou
três milhões de libras, visando satisfazer, com precisão cirúrgica, não um
genérico e indiferenciado desejo de comer uma guloseima, mas uma específica
necessidade de conforto, para cuja identificação foi constituído um grupo de
estudo, reunido num hotel durante uma semana, de modo a comunicar ao
responsável pelo projecto todas as ansiedades e desejos insatisfeitos. As
tarefas assumem tal complexidade que no processo que vai da concepção à
comercialização, participam um total de 5.000 trabalhadores. Como o autor comenta
mais adiante, “o pesar era a única resposta racional à notícia de que um
funcionário tinha passado três meses a conceber uma promoção para
supermercados, baseada na oferta de três autocolantes” de personagens de
desenhos animados.
Não se trata, naturalmente, de denegrir o trabalho,
ou certos tipos de trabalho. Trata-se de sublinhar que a forma como hoje a vida
se organiza torna mais difícil que as pessoas encontrem, naquilo que fazem, uma
razão para continuar. Não pode deixar de impressionar uma tamanha concentração
de recursos, de tempo, de esforço humano, em tarefas cujos horizontes são tão
estreitos. Há aqui, como sublinha Alain de Botton, uma disparidade entre a
seriedade dos meios e a vacuidade dos fins; os biscoitos são desenhados da
melhor forma possível para responder a uma carência, mas fazem-no de uma forma
que paradoxalmente aumenta o vazio por trás dessa carência, e portanto, a ideia
que fica é a da inutilidade do esforço. Botton cita um trecho de Ruskin, onde
se diz que não há pior desperdício, nem pior forma de matar alguém, do que desperdiçar
o seu trabalho.
O texto bíblico já reflectia sobre estas coisas:
“Porque gastais o vosso dinheiro naquilo que não alimenta? E o vosso salário
naquilo que não pode saciar-vos?” (Isaías,
55, 2). É que as coisas não são todas iguais: umas salvam, outras não.
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