Em Esperança salvos somos...
Como tema da sua segunda encíclica, Bento XVI escolheu a Esperança. Spe Salvi é o título dela. No Natal de 2005, ano primeiro do seu pontificado, falou sobre a Caridade (Deus Caritas Est). É quase certo poder afirmar que, na terceira, invocará a Fé e ver, nesta ordenação das virtudes teologais, a Palavra do Apóstolo das Gentes na Primeira Epístola aos Coríntios: “Porém a maior destas, a Caridade é” (Cor.I, XII, 13) “porque tudo encobre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (Cor.I, XIII, 7). Esta poderosa encíclica em que, dos autores não canónicos, Santo Agostinho é o mais citado, pode resumir-se na glosa à passagem do comentário do autor das Confissões ao Salmo 91:
“O objecto da fé reside em coisas que não vemos, mas cuja realidade brilhará plenamente quando as pudermos ver.
O objecto da esperança reside, também, em coisas que não possuímos, mas que virão. Mas já não virão em esperança, porque as possuiremos e não teremos que as esperar.
Mas a caridade, pelo contrário, não deixará de aumentar. Porque se amamos a Deus, que não vemos, quanto mais O amaremos quando O virmos”.
E, no entanto, para alguns, a Esperança permanece a virtude mais misteriosa, aquela que pasma o próprio Deus, como escreveu Péguy em Le Porche du Mystère de la Deuxième Vertu, quando lhe chamou petite fille esperance. “Que esta gente veja como tudo hoje se passa / e creia que amanhã irá melhor, / Que vejam como tudo hoje se passa e creiam / que amanhã de manhã irá melhor / E espantoso é mesmo a grande maravilha da minha graça / É o que a mim mesmo me espanta”, como de Péguy traduziu Manuel de Lucena em idos que já lá vão.
Bento XVI não se quedou poeticamente no pórtico do Mistério da chamada segunda virtude. Abordou-a, como havia abordado a Caridade. Como pastor e como Filósofo, se me é lícito transpor para o autor da encíclica uma imagem que usa a propósito de Cristo, e que não me recordo ter visto alguma vez com tanta clareza e com tanta força.
Diz o Papa, no sexto capítulo da sua carta encíclica: “A figura de Cristo é interpretada, nos antigos sarcófagos, sobretudo através de duas imagens: a do filósofo e a do pastor. Em geral, por filosofia não se entendia então uma difícil disciplina académica, tal como ela se apresenta hoje. O filósofo era antes aquele que sabia ensinar a arte essencial: a arte de ser rectamente homem, a arte de viver e de morrer.” (…) Quase ao fim do século terceiro, encontramos pela primeira vez em Roma, no sarcófago de um menino e no contexto da ressurreição de Lázaro, a figura de Cristo como o verdadeiro filósofo que, numa mão, segura o Evangelho e, na outra, o bastão do viandante, próprio do filósofo.” (…) “O mesmo se torna visível na imagem do pastor. Tal como sucedia com a representação do filósofo, assim também na figura do pastor a Igreja primitiva podia apelar-se a modelos existentes da arte romana. Nesta, o pastor era, em geral, expressão do sonho de uma vida serena e simples de que as pessoas, na confusão da grande cidade, sentiam saudade. Agora a imagem era lida no âmbito de um novo cenário que lhe conferia um conteúdo mais profundo.” (…) A certeza que existe Aquele que, mesmo na morte, me acompanha com o seu bastão e com o seu cajado conforta-me. Esta era a nova ‘esperança’ que surgia na vida dos crentes”.
O Vigário de Cristo na Terra não é Cristo e sabe-o bem. Mas a ele lhe cabe ensinar, como seu bastão, a arte de viver e de morrer, como a ele lhe cabe, com o seu cajado, amparar-nos no caminho, Pastor que também é, desde que Cristo disse a Pedro: “Apascenta as minhas ovelhas”. De Pedro é Bento XVI o sucessor.
No XI capítulo da Epístola aos Hebreus (v.1) diz S. Paulo: “A fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem”. Curiosamente, esta tradução do Padre Annes de Almeida aproxima-se da leitura do Papa, depois de ter sido posta em causa tanto por Lutero como por alguma exegese católica. Bento XVI demora-se na interpretação desta passagem. Como ele próprio diz, ela não traduz apenas uma convicção (“estar convencido das coisas que não se vêem”) mas estabelece objectivamente uma prova. A fé fundamenta a esperança, a fé prova-nos as coisas que ainda não vemos e só esperamos. Como diz o Papa: “Atrai o futuro para dentro do presente, de modo que aquele já não é o puro ‘ainda-não’. O facto de este futuro existir, muda o presente; o presente é tocado pela realidade futura, e assim as coisas futuras derramam-se naquelas presentes e as presentes nas futuras”. Não é o corriqueiro “enquanto há vida há esperança”, é a prova de que a única esperança é a que se concretizará depois da morte. Nenhuma esperança se pode realizar totalmente na nossa vida terrena, mas todas se realizarão na “vida eterna”.
“Vida eterna”. Bento XVI demora-se nessa expressão e demora-se de modo inusitado. “Queremos nós realmente isto: viver eternamente? Hoje, muitas pessoas rejeitam a fé, talvez simplesmente porque a vida eterna não lhes parece uma coisa desejável. Não querem de modo algum a vida eterna, mas a presente; antes, a fé na vida eterna parece, para tal fim, um obstáculo. Continuar a viver eternamente – sem fim – parece mais uma condenação do que um dom. Certamente a morte queria-se adiá-la o mais possível. Mas, viver sempre, sem um termo, acabaria por ser fastidioso e, em última análise, insuportável”.
Jorge de Sena, num poema sublime, escreveu: “De morte natural nunca ninguém morreu / não foi para morrer que nós nascemos”. Conheceria ele de Santo Ambrósio, o De excessu fratris sui Satyri (Elegia à morte de Sátiro, irmão defunto) citado pelo Papa, e em que Ambrósio diz também que a morte não é natural, que Deus não instituiu a morte. “Deu-a como remédio quando a vida dos homens começou a ser miserável. Deus teve que pôr fim a estes males, para que a mote reutilizasse o que a vida havia perdido”. Sena, de novo, referindo-se a Deus: “De nós se acresce ele mesmo, que será / o espírito que formos, o saber e a força. / Não é nos braços dele que repousamos / mas ele se encontrará nos nossos braços / quando chegarmos mais além do que ele. / Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste / a quem te amou a quem te deu o ser – / não nos aguarda, não. Por cada morte / a que nos entregamos el’se vê roubado / roído pelos ratos do demónio, / o homem natural que aceita a morte / a natureza que de morte é feita”.
Não vou tão longe que diga que o Papa subscreva estes versos. Mas o Papa põe-se a questão, e pergunta o que é que na verdade a vida e o que é que significa realmente eternidade. “Não sabemos o que queremos, não conhecemos vida verdadeira”. Permanecemos no que Agostinho chamou docta ignorantia. Mas, citando de novo Agostinho, o que sabemos que deve existir é algo que não conhecemos e o que nos impele para ele é a Esperança. “Quando a hora chegar” onde “em Espaço caiba a Eternidade”, como se diz no final do poema de Sena (A Morte, o Espaço, a Eternidade, in Metamorfoses) que algo sacrilegamente e algo sagradamente conflui para mim como as palavras de Bento XVI.
Escreve o Papa: “Conjecturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade.” “Mergulhamos no oceano do amor infinito” como o Mergulhador de Paestum, “no quando antes, depois, o tempo deixar de existir”.
Esta impossibilidade de pensar ou imaginar a vida eterna tem anulado todas as visões do Paraíso, quer seja a de Dante, tão demoradamente humana, quer seja a das inúmeras representações do Céu dos grandes pintores do século XV. Que vemos nelas? Vultos de plácidos rostos e de azul vestidos, sentados em adoração. Vida nunca ninguém a imaginou no reino de Bemaventurança. E é no entanto na esperança dela que reside a nossa Esperança.
Bento XVI demora-se na análise das imagens terrenas que tentaram substituir a vida eterna, a vida depois da morte, pelos vários paraísos terrenos.
Remonta a Francis Bacon e à crença no progresso que fará surgir um mundo totalmente novo. “Do arco e da flecha à megabomba” ironizou no século XX Adorno, também citado pelo Papa, certamente na primeira encíclica que o cita e ele e a Hockheimer. Como cita o Gorgias de Platão e vários textos de Kant.
E quando o Papa pede uma “autocrítica do cristianismo moderno”, fala expressamente do cristianismo que já conhece o desespero das esperanças frustradas da Revolução Francesa ou da Revolução de 1917.
“Não é a ciência que redime o homem”, diz o Papa. “O homem é redimido pelo Amor”. Aquele amor de que fala S. Paulo (Rom.VIII, 38-39): Porque cero estava, que nem morte nem vida, nem anjos nem Principados, nem Potestades, nem o presente nem o porvir, nem a altura nem a profundeza, nem alguma outra criatura, nos poderá afastar do Amor de Deus, que em Cristo Jesus, Senhor nosso está”.
Sempre me espantou – e sempre admirei – a esperança de homens que não acreditam em qualquer vida para além desta, num futuro paraíso terreno, seja o da sociedade sem classes, seja o do progresso ilimitado. Se eu for só poeira ou cinza nesse futuro distante, como poderei saber se a minha esperança se alcançou? A minha última visão do mundo é uma visão de ódio e desespero, de raivas e de vinganças. Como consolar-me com um futuro que não conhecerei?
Bento XVI di-lo, com força admirável, nesta Encíclica, em que também interpela a consolação de tais esperanças.
“A época moderna desenvolveu a esperança da instauração de um mundo perfeito que, graças aos conhecimentos da ciência e a uma política cientificamente fundada, parecia tornar-se realizável. (…).Mas, com o passar do tempo fica claro que esta esperança escapa sempre para mais longe. Primeiro deram-se conta de que esta era talvez uma esperança para os homens de amanhã, mas não uma esperança para mim. E, embora o elemento « para todos » faça parte da grande esperança – com efeito, não posso ser feliz contra e sem os demais – o certo é que uma esperança que não me diga respeito a mim pessoalmente não é sequer uma verdadeira esperança”.
Qual é a verdadeira esperança? Essa, a tal que “espanta o próprio Deus”, vem da con-solatio, a consolação do amor solidário de Deus.
Para exprimir essa solidariedade, Bento XVI, nesta assombrada e assombrosa encíclica, cita, de São Bernardo, a frase que o próprio Papa adjectiva como “maravilhosa”. Impassibilis est Deus, sed non incompassibilis” (“Deus é O que não pode padecer, mas se pode compadecer”).
Acreditá-lo depende mais da nossa Esperança do que da nossa Fé. Ou, talvez, da nossa Caridade. “Uma chama inatingível, que nem o sopro da morte / consegue sufocar”, para acabar re-citando Péguy.
João Bénard da Costa, Público, 16.12.2007.
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