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Igreja "Em Saída" - Francisco Sarsfield Cabral [4ª conferência de Maio 2014]

No seguimento e na linha do que disse o Prof. Juan Ambrosio, começo por salientar que o cuidado pelos outros, sendo importante na fé cristã, não é um exclusivo do cristianismo, nem sequer – como de algum modo foi dito – da religião. 
A diferença cristã está em que Jesus Cristo afirmou que aquilo que fizermos aos mais pequenos e aos mais pobres é a Ele que o fazemos. Esta é a especificidade essencial do cristianismo. Decorre da Encarnação de Deus num homem, Jesus, que a levou às últimas consequências. Por outras palavras, a fé cristã encara a sério a humanidade de Deus. 
Mas como chegar aos outros? A exortação apostólica A Alegria do Evangelho indica com toda a clareza o caminho: trata-se de construirmos “uma Igreja de portas abertas”(46). Uma Igreja “em saída” é isso mesmo, sai em direcção aos outros. 
O Papa Francisco já mostrou, por gestos e por palavras, ser fundamentalmente um pastor. Falando numa linguagem simples – mas muito longe de ser simplista! – e tomando atitudes e iniciativas em plena coerência com o que diz, este Papa está a conseguir chegar às “periferias”. Ensina-nos, assim, como devemos concretizar o “dinamismo missionário” a que somos chamados. 
Trata-se, afinal, de adoptar a atitude de Jesus, o seu estilo de vida. Ele falava e comia com publicanos, com pecadores, com prostitutas. As mulheres têm no Evangelho uma importância muito superior à que a sociedade daquele tempo em geral lhes dava. 
Para o judaísmo do Antigo Testamento era difícil aceitar que Deus se envolvesse com a humanidade. Numa recente homilia na Capela do Rato, o Pe. José Tolentino de Mendonça recordou o Salmo 23. “Deus é meu pastor, nada me falta. Mesmo quando estou numa ravina tenebrosa, Deus está lá comigo”. E acrescentou algo que eu ignorava: esta última afirmação era considerada por alguns judeus uma blasfémia: como seria possível estar Deus misturado na “lama humana”? Mas está, diz-nos Jesus Cristo. 
No estilo directo e sem complicações característico do Papa Francisco, a exortação Evangelium Gaudium aponta quem devemos privilegiar nesta “Igreja em saída”: os doentes e os pobres, os desprezados e esquecidos, aqueles que não têm com que retribuir” (48). 
A atitude evangélica é radicalmente contrária à que separa os “puros” dos outros. Este medo primitivo do impuro, como símbolo ético (Paul Ricoeur), é um sentimento que não raro encontramos ainda em grupos cristãos que se consideram a si próprios como os detentores e os guardiões da ortodoxia, afastando deliberadamente os que julgam menos ortodoxos – os impuros. Acontece, também, fora do cristianismo, noutras religiões. E é frequente, ainda, em grupos políticos radicais. 
Mas tal atitude farisaica é contrária ao espírito evangélico e à prática de Jesus. Basta recordar a parábola do publicano e do fariseu a rezarem no templo. Ou reparar nos gestos do Papa Francisco: baptizou um bebé de mãe solteira (aliás, ele próprio sublinhou não haver mães solteiras, há mães…), lavou os pés a presos tóxico-dependentes, foi a Lampedusa contactar pessoalmente com a tragédia dos imigrantes e alertar para a indiferença da sociedade, etc. 
Decerto que na Igreja Católica, como em muitos outros colectivos, é necessária uma “ortodoxia”. Caso contrário, seria o “vale tudo”. Importa, porém, colocar as coisas nas suas devidas proporções. 
Cristo não veio rejeitar a Lei. Mas relativizou-a: o sábado é feito para o homem, não o inverso. Uma das qualidades que destaco no Papa Francisco é que ele tem perfeita noção daquilo que é essencial na nossa fé. O essencial não está nas regras, nos discursos intelectuais e teológicos, na moral sexual, etc. Tudo isso é importante, claro, mas o amor e a misericórdia de Deus estão acima. 
Quando o Papa Francisco disse que os católicos falam demasiado do aborto e de outras questões dessa área, ele não estava a defender o aborto. Estava simplesmente a lembrar que a fé no Deus de Jesus Cristo não é uma doutrina, uma ética, muito menos uma ideologia – é um encontro de amor. É esse o núcleo central da fé cristã. 
Lembremos a parábola do filho pródigo. O pai abraça com imensa alegria o filho que regressava de uma vida dissoluta, escandalizando, aliás, o bem comportado filho mais velho. Reacção que tantas vezes encontramos em meios católicos. 
No fundo, hoje e sempre precisamos de voltar ao Evangelho e à sua alegria. 

Francisco Sarsfield Cabral

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