O CRC é um espaço de diálogo entre cristãos de diferentes sensibilidades, e entre cristãos e não cristãos.

Homens e Mulheres numa Igreja Serva e Pobre - Comunicação de Teresa Vasconcelos


1. Um incidente – Uma Iluminação - Uma Meditação



No âmbito de um encontro de carácter profissional fiz uma visita (em Abril de 2013)  à Catedral de São-Bavo em Ghent onde está o célebre tríptico dos irmãos Van Eyck intitulado Adoração do Cordeiro Místico (1432). 
Relembrei de imediato as palavras do Apocalipse sobre as túnicas brancas: (...) Ele disse-me: «Estes são os que vêm da grande tribulação; lavaram as suas túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro.  (...)  Nunca mais passarão fome nem sede; nem o sol nem o calor ardente cairão sobre eles, porque o Cordeiro que está no meio do trono os apascentará e conduzirá às fontes de água viva; e Deus enxugará todas as lágrimas dos seus olhos.» (Apocalipse)
 Consciencializei que as “lágrimas dos seus olhos” podem também ser uma fonte de Água Viva. As lágrimas que hoje choramos por uma Igreja pecadora e que se serve em vez de servir poderão transformar-se em fonte de Água Viva?
No quadro, há outros grupos que convergem para o Cordeiro  rodeado de anjos. O grupo mais denso e mais interpelador, a meu ver, é o grupo dos “gentios”: gente comum (sem tiaras, nem cetros, sem vestes ricas e imponentes), alguns com chapéus asiáticos, outros africanos, outros com barbas hirsutas, outros com turbantes: não há mulheres entre eles, infelizmente, mas estamos no séc XV... - lá muito atrás no quadro há o grupo das virgens e das santas a acenar com ramos de palmeira... não, não há mulheres comuns... (mães de família, mulheres solteiras, mulheres idosas, jovens raparigas ...); 
·      as túnicas brancas, os que vêm da grande tribulação, são só homens...
O Sol no qual poisa (emerge) o Espírito Santo irradia sobre tudo, fazendo convergir para si tudo e todos  (cidades no horizonte, montanhas, flores do campo, a centralidade da água da fonte...eu vos darei rios de água viva). No centro está o “cordeiro místico” para onde tudo converge... Estes os “fins dos tempos...”, a plenitude de Deus em Cristo... ou será a imperfeição desta pintura  que me interpela hoje: Uma Igreja serva e pobre?
2. Revisitando uma Mulher de/da Igreja
-       Teresa Santa Clara (TSC) em apontamentos não datados, escritos à mão, metidos ao acaso numa pasta...imagino que do tempo do Vaticano II ou anteriores
TSC interroga: Porquê tantas espiritualidades na Igreja?
Espiritualidade enquanto “modo como a nossa fé é vivida num certo tempo, por determinadas pessoas, predominando certos elementos, certa composição de determinados elementos da nossa Fé...acento especial num aspeto ou noutro”:
-       Objectivamente: porque como criaturas somos limitadas/os (“Igreja pobre”, espiritualmente) e ninguém, em nenhum momento é capaz de viver a totalidade do mistério da nossa Fé.
-       Subjectivamente porque somos pobres, fracos, pecadores, e não somos capazes de abarcar todas as graças que Deus nos dá
TSC: Quem determina as orientações que espiritualmente tomamos em cada tempo e lugar?
-       O estudo dos teólogos – (estudo das diferentes teologias, diríamos hoje...;  
-        o modo como os fiéis vivem a sua fé – “teologias contextuais”, diríamos hoje...“teologia da experiência” “a minha pequena teologia” (LMCintra); “teologia do meu quotidiano” (TV)
-       Mas, por trás disto, a certeza de que quem verdadeiramente guia as diferentes correntes de espiritualidade é o Espírito Santo - através dos meios humanos, claro!
Ainda TSC: Igreja instituição ou Igreja Comunhão? 
Como parte da Igreja partilhamos da Redenção afirma TSC:
1. O mistério da Igreja é  Cristo:  Lumen Gentium 1. – Cristo é Luz dos Povos – (...) Igreja Corpo Místico de Cristo! TSC: Encontramos os amigos em casa de amigos....)


Hierarquia: 
(...) Deixei de temer a falta de respeito. Nasce o verdadeiro respeito só do amor. Não reconheço hierarquias, é humilhante ser respeitado por obrigação. (...) (de uma inspiradora conferência/testemunho de Luís Miguel Cintra “Creio na Ressurreição”[1]).  
TSCQue papel dos Leigos na igreja ?
Reconstruir a ideia de Igreja em  Comunhão (comunhão que não é estática, se vai construindo...)
1.     Lumen Gentium 1–(...) ser instrumento de união íntima com Deus e da unidade de todo o género humano, é a missão universal da Igreja
TSC Polos à volta dos quais se centra a nossa espiritualidade
No Graal (inspiração inicial do Padre van Ginneken, jesuíta, fundador do Graal na Holanda há cerca de 100 anos) era:
-       A contemplação de Deus
-       A “conversão do mundo”, referindo-se à nossa missão profética: porque todos somos redimidos!
Ainda TSC: a vocação do apóstolo leigo como mistério do Espírito: a Igreja não divide o seu tesouro aritmeticamente pelos diferentes grupos – um para a pobreza, outro para a humildade; um para a contemplação, outro para a ação – falando numa dimensão ética da Fé (TSC)<. 
1.     Gaudium et Spes : Proémio 1: Eles são, com efeito, uma comunidade de homens unidos em Cristo, dirigidos pelo Espírito Santo na sua peregrinação para o Reino do Pai e portadores de uma mensagem de salvação, que devem comunicar a todos. É por isso que a comunidade dos cristãos se reconhece real  intimamente e solidária do género humano e da sua história :Do Proémio (p. 149): “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens (e mulheres) do nosso tempo, sobretudo dos pobres (...)  
- Atos dos Apóstolos[i], : tinham tudo em comum, entre os seus membros não havia indigentes e cada um recebia conforme a sua necessidade.
- Fazer acontecer O Evangelho dos Marginalizados – Papa Francisco
- Uma Igreja serva e pobre: Para uma Igreja do cuidado (MLP)[2]



B – Mulheres e Homens (numa Igreja serva e pobre)

Françoise Gilot por Picasso
Françoise Gilot[3] chama “As guardiãs do limiar” a um quadro que é descrito por Maria de Lurdes Pintasilgo (MLP) ao referir-se à “Igreja do Limiar” de Y. Congar: 
Era uma casa baixa, de cor ocre ou branca, algures no norte de África. Cá fora a paisagem é seca, sente-se o calor. A porta está aberta. Mas não se vê nada dentro da casa. Apenas dela irrompe uma grande luz. À porta duas silhuetas de mulheres de que não conhecemos os rostos. A essas mulheres sem nome Françoise Gilot chamou “As guardiãs do limiar”
Lembrei as Santas Mulheres, as guardiãs do túmulo, aquelas que primeiro anunciaram a Ressurreição. 
1. Teresa de Ávila, uma guardiã do limiar (séc XVI): 
uma vagabunda inquieta, rebelde e cabeçuda, que inventava doutrinas retorcidas, lhes chamava devoções e permitia-se ‘ensinar’ quando o apóstolo Paulo de tal proibira as mulheres”
(Núncio apostólico, Felipe Sega, que não gostava da obra Teresa de Ávila de fundação de conventos, in: Kristeva: 151)
Sta Teresa de Ávila e o regresso ao Convento da Encarnação – senta-se junto às outras monjas... No cadeiral da Superiora fica a estátua de Nossa Senhora, afirma ela
Creio poder dizer que, para Teresa, o convento – e menos a Igreja institucional (que ela bem soube “contornar” com um imenso humor e sabedoria – foi um espaço de liberdade
O Graal – movimento ecuménico de mulheres leigas, enquanto espaço de Igreja - tem sido,  também para mim, um espaço de liberdade.
Será que a Igreja pode desperdiçar a força das mulheres? – Citar o Memorial do Convento[4]:   “Uma mulher extraordinária, um rasgão de luz, energia humana e suave espiritualidade de nome Blimunda, captadora de vontades por natureza  (enquanto personagem) e vocação (enquanto expressão do seu criador literário)  - 
Para quando a Igreja serva e pobre enquanto espaço de liberdade para as Mulheres? – apenas desejamos uma Igreja  diferente, em que a hierarquia sirva as pessoas, os mais pobres, todos os ministérios abertos às mulheres – mas no contexto de formas diferentes de exercer o “ministério” – uma igualdade inédita e subversiva (MLP, idem)
Segundo Anselmo Borges – última coluna no DN – A questão das Mulheres na Igreja é uma questão de direitos humanos.
Grande Inquisidor, dirigindo-se a Cristo: É que tu vieste incomodar-nos,  e Tu próprio sabe-lo muito bem (p. 305) 
Cito um excerto da Oração de Teilhard de Chardin no seu livro Le Milieu Divin [5] (trad Isabel A. de Magalhães) que pode ser o grito das Mulheres na Igreja, ou, simplesmente o desejo de sermos   mulheres e homens numa Igreja (serva e pobre):
Deixai-nos aperceber, ó Deus – num sentido real e pleno – como é verdade que “as nossas obras nos seguem” no Reino. Purifiquemos a nossa intenção, e então a mais insignificante das ações encontrar-se-á penetrada pelo Espírito. E graças à Vossa inspiração que comanda todo o meu ser, responderei com o cuidado: para não abafar, nem desviar, nem desperdiçar a minha força de amar e de agir.


C -  Igreja pode ser um Third Space[6] (um Terceiro Espaço)

Não busques o espelho mas o diverso
(José Augusto Mourão)

 Nunca está acabada a tensão em que vivemos a Igreja que somos... procuramos uma certa “sabedoria” de que fala o Livro de Ben Sirá. Pessoalmente, vivo uma Tensão Criadora, fonte da Vida Espiritual, água que se move, Água Viva a emergir das nossas lágrimas porque a Igreja é imperfeita.
1. um conceito das Ciências Sociais
 Hommi Bahba qdo fala no diálogo entre culturas propõe um “third” space que resulta do cruzamento entre duas ou mais culturas, sendo o terceiro espaço um resultado desse (o terceiro incluído, segundo o físico quântico Nicolescu).
Homi Babha desenvolve este conceito com base noutro conceito o de cosmopolitanismo: : Cosmopolitanism at its best is an understanding that a range of cultural traditions can have an effective conversation among themselves, and even if their beliefs are different they can through those dialogues and conversations negotiate a framework of human values that are equally beneficial to each of those cultures and societies.
Proponho uma Igreja cosmopolita mas não elitista
A vários níveis deixo o desejo – e a intuição! – de que a Igreja possa ser  um cruzamento de fronteiras, um terceiro espaço, que se torne ato de criação, uma Nova Criação, aqui, nesta terra em que vivemos:  
-       Igreja instituição de todas e todos nós (e não para, como se estivéssemos de fora de um círculo de eleitos... ao serviço da igreja comunhão numa Ação penetrada pelo Espírito (Teillard de Chardin)
- no cruzamento dos contributos diferenciados de homens e mulheres; tradição/modernidade; individual/colectivo;  e, tb, de culturas, contextos, raças, continentes necessariamente diferentes. Um third space , uma Igreja serva e pobre, à escuta do seu tempo, criadora de uma plataforma giratória que se desenha no Infinito
É neste third space enquanto tensão criadora, nunca plenamente resolvida mas cada vez mais sabiamente vivida – assim o espero! – que somos desafiados a construir uma Igreja Serva e Pobre.  
2.     Um Third Space (Terceiro Espaço) no Tempo do Espírito
Por isso insisto em afirmar: “Eu Creio” eu quero crer e acreditar numa igreja pós-conciliar, inspirada pelo Espírito Santo; quero querer (bem) a uma Igreja assim, serva e pobre, esta igreja que vou desenhando com tantas e tantos outros, na nossa cosmopolitaniedade, e estou a inventar uma palavra nova, ousadia que fará sentido ao falar de um third space para a Igreja.  Apesar de muitas vezes me interrogar: “Creio?” afirmo, no meio de muita “noite escura” e “em tempos sombrios” (H. Arendt): escolho acreditar numa Igreja Serva e Pobre feita por mulheres e homens: Quero ser guardiã do limiar (à maneira de F. Gilot), numa Igreja do Limiar (Padre Congar)
Um presente, que é preciso transformar: Não vos conformeis com este mundo.[ii] Cristo diria hoje: não vos conformeis com esta Igreja:
triângulo do Espírito: que é este third space senão sermos parte daqueles que vivem  no tempo do Espírito que inunda e transcende a Igreja que somos? - como afirmou Frei Bento na sua última crónica que só me chegou esta manhã, quando tinha decidido usar a metáfora do third space:
O Abade Joaquim de Flora[iii], da Calábria, viu nessa experiência do passado, em pequena escala, o futuro, a última era do mundo: mediante uma original teologia da história, distribuiu o tempo por cada uma das pessoas da Santíssima Trindade. A era do reinado do Divino Espírito Santo superava e tornava caduca a época do Pai e a do Filho. Inaugurava o reinado do puro amor, da liberdade e da alegria, cume insuperável da história humana, sem contradições nem mediações[iv].
Creio numa Igreja, assim, fonte inesgotável de Água Viva ao jeito de José Augusto Mourão:

A nós que agora vemos em espelho
Aguardando o face a face do teu Dia



[1] Nas Monjas Dominicanas, Lumiar, 
[2] cit por Maria de Lourdes Pintasilgo “Para um Novo Paradigma – um mundo assente no cuidado” Afrontamento, 2011
[3] pintora francesa vivendo nos EUA, cit por Maria de Lourdes Pintasilgo “Para um Novo Paradigma – um mundo assente no cuidado” Afrontamento, 2011. p. 371.
[4] In… A Espiritualidade Clandestina de Saramago  (por Manuel Frias Martins. Fundação Saramago)
[5] In: A “divinização da atividade”- traduzido por Isabel Allegro de Magalhães (p. 29-33;69) 

[6] Third Space[edit]
The Third Space acts as an ambiguous area that develops when two or more individuals/cultures interact. It "challenges our sense of the historical identity of culture as a homogenizing, unifying force, authenticated by the originary past, kept alive in the national tradition of the People".  




[i] Act 4, 32-37
[ii] Rm 8 
[iii] 1132-1202
[iv] Google tem diversas entradas sobre toda esta vasta problemática

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