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Cultura da Beleza, do Dom e da Gratuidade - Comunicação de Miguel Raimundo

[Continuação daqui ]
Entre gastar e poupar, ou entre gastar numa coisa ou em outra, há sempre uma “escolha moral e cultural” (S. João Paulo II, Centesimus Annus, n.º 36). A cultura parece ter perdido esta capacidade de seleccionar, de nos transmitir a diferença entre aquilo que é essencial e aquilo que é acessório, aquilo que tem valor e aquilo que não tem. 
Isso nota-se, precisamente, naquilo que consumimos e no modo como o consumimos. Nada disto é por acaso: como notou Luc Ferry, para que o homem se pudesse transformar num ser que consome desregradamente, foi preciso destruir os sistemas que lhe impunham limites ao consumo: foi preciso destruir e desacreditar virtudes, como a moderação, a temperança e a abnegação, para que as pessoas não sintam (ou sintam menos) a má consciência em consumir muito para lá daquilo que necessitam. 
Mais relacionado com isto do que se poderia pensar à primeira vista, parece muito certeira a definição de cultura dada por Wittgenstein: “Uma cultura é como uma grande organização que atribui a cada um dos seus membros um lugar em que ele pode trabalhar no espírito do conjunto (…). Numa época sem cultura, por outro lado, as forças tornam-se fragmentárias e o poder do indivíduo consome-se na tentativa de vencer forças opostas e resistências ao atrito” (Cultura e Valor, Edições 70, 2000, p. 20). 
De facto, numa época sem cultura, as pessoas vivem sozinhas. Todas as suas expressões, desde o trabalho, à forma como vivem a escassez de bens materiais ou o envelhecimento, o manifestam. A nossa época é talvez uma das que tem tido mais dificuldade em compreender que a inserção de uma pessoa numa tradição, numa cultura, não anula a individualidade, o carácter único de todas as pessoas. Integrar-se em alguma coisa que existe e preservá-la é um acto de humildade. É mais fácil e intuitivo revoltar-se, transformar as coisas à nossa imagem. Acho muito verdadeira e necessária a mensagem que tenho lido e ouvido da parte da Igreja: de facto, a oração, a relação com Deus, é intrinsecamente pessoal e individual, mas é bom regressar às orações que são partilhadas por todos. Rezar uma oração que já foi rezada por outros é também um acto de cultura. Ao rezarmos um Pai-Nosso estamos a receber algo que nos foi deixado pelo próprio Jesus, algo que todos os que nos precederam tiveram a persistência de preservar para nós, naquele conceito fundamental do “depósito da fé”. 
Mas esse acto de rezar algo que outros rezaram, sem o adulterar, pressupõe que nos deixemos conduzir de uma forma dócil – mais uma coisa tão alheia ao espírito deste tempo, que se apressa a dizer que não devemos seguir o rebanho. Talvez fosse esta incapacidade que referia ainda Wittgenstein: “não posso ajoelhar-me para rezar, porque é como se os meus joelhos estivessem perros. Tenho medo da dissolução (da minha própria dissolução), se me tornasse mole” (Cultura e Valor, p. 86). 
De facto, quando eu me aproximei da Igreja, gostava de ouvir as leituras e a homilia – a lei sempre me disse alguma coisa. Mas o resto da missa, particularmente a parte em que as pessoas rezavam em conjunto e em voz alta, parecia-me mecânico, automático e massificante (admito que por vezes este sentimento seja rigoroso). 
Penso que uma parte significativa dessa sensação que eu tinha ocorria por força de confundirmos o apelo natural para a criatividade e a individualidade com uma necessidade constante de novidades. Como diz Chesterton, também ele um convertido tardio: «Supõe-se que, se uma coisa se repete, provavelmente estará morta; que se trata, provavelmente, de um mecanismo. (…) o sol nasce todas as manhãs porque nunca se cansa de nascer; a rotina do sol não fica a dever-se a uma ausência de vida, mas a um impulso de vida. (…) É porque têm uma abundância de vitalidade, porque têm um espírito intenso e livre, que as crianças gostam das coisas repetidas e imutáveis. Uma criança está sempre a dizer: “Outra vez”; e a pessoa adulta faz outra vez, até quase cair de morta. Porque os adultos não têm força suficiente para exultarem na monotonia. Mas talvez Deus tenha força suficiente para exultar na monotonia. É possível que, todas as manhãs, Deus diga ao sol: “Outra vez”; e que, todas as noites, diga à lua: “Outra vez”.» (Ortodoxia, Aletheia, 2008, pp. 82-83).
E portanto, a beleza, a marca de Deus, é possível na repetição. O precónio da missa da vigília pascal, ou a ladainha dos santos que aí se reza, são coisas muito belas, mas o mais surpreendente, o mais incrível, o mais belo, é que todos os anos, num certo dia, desde tempos imemoriais, um sem número de pessoas reze daquela maneira, com uma melodia que não teve de aprender nos livros, porque a ouviu vezes sem conta. A vigília pascal em si é bela, mas o mais belo é a sucessão de actos individuais de fidelidade que a fez chegar até nós.
A observação da realidade leva-nos, contudo, a detectar outro obstáculo. É que a beleza da missa da vigília pascal é uma evidência: é fácil ser feliz na missa da vigília pascal. Porém, o teste mais difícil é sempre o do quotidiano, porque a nossa vida não é uma permanente vigília pascal. Por isso, numa catequese do primeiro dia de Maio de 2013, celebrando São José Operário, o Papa Francisco lembrava precisamente que Jesus aprendeu em casa, com José, uma profissão, compartilhando com ele o compromisso, o cansaço, a satisfação, as dificuldades do dia-a-dia. E não por acaso, nessa sequência, o Papa dirigiu um forte apelo aos jovens: para se comprometerem no dever quotidiano, no estudo, no trabalho, na amizade, porque o seu futuro depende também do modo como souberem viver esses anos de juventude; para não terem medo do sacrifício, do compromisso, e para não olharem o mundo com temor, para manterem viva a esperança (O Mistério da Igreja, Paulus, 2014, p. 28).   
De facto, podemos interrogar-nos licitamente se uma das coisas que caracteriza o nosso tempo não é a legitimação, por todos os meios, desta fuga ao compromisso. Penso que não é errado notar que a cultura dos nossos dias transmite desde cedo às crianças e aos jovens uma ilusão que depois se torna muito dolorosa: que é possível viver sem sofrer e que é legítimo fugir ao sofrimento. 
Uma cultura que foge ao sofrimento, pela lógica, seria mais alegre, menos infeliz. Mas paradoxalmente o resultado disto é uma cultura que se fecha à alegria, quer dizer, à vida. 
Por exemplo: é com algum choque que se percebe que hoje em dia, quando se diz a alguém que se vai ter um bebé, muitas pessoas escolham enfatizar a preocupação pelos efeitos negativos que isso tem sobre a criança que era filha única e agora terá um irmão ou uma irmã, sobretudo se o até aí filho único é ainda muito pequeno. 
Há nisso algo de preocupante: é como se as pessoas estabelecessem cada vez mais condições para que seja adequado fazer uma vida nascer. E assim, vão surgindo solícitos pedagogos, pediatras, pedo-psiquiatras, que fornecem cómodas explicações científicas para demonstrar como é traumático para uma criança ter irmãos. Já é lugar-comum dar-se estas explicações pseudo-científicas para justificar, por exemplo, o espaçamento ideal entre os irmãos. Talvez não tenhamos de esperar muito até que nos digam que as crianças que são filhas únicas são mais felizes, porque têm tudo só para eles. 
Tudo isto é incompatível com uma cultura do dom, uma cultura que prepare as pessoas para estar constantemente a agradecer os dons que recebem. O que a cultura de hoje nos diz é que só agarrando-nos, com toda a força do egoísmo, à vida que temos, se consegue manter essa vida. É claro que é natural que uma criança sinta que o surgimento de um irmão lhe rouba um pedaço de vida, mas é tudo menos natural que os adultos lhe alimentem essa tentação. Um dos propósitos de uma cultura saudável está, justamente, em contrariar as tendências para o egoísmo, mas a nossa cultura parece não querer desempenhar essa missão. 
Os cristãos têm aqui um papel fundamental em não permitir que se esqueça o essencial. Como diz o Papa Francisco, é preciso anunciar a partir do que é mais belo, a partir do coração do Evangelho (Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, n.º 35). Ora, o coração do Evangelho é a certeza de que só dando a vida é possível criar mais vida, como na parábola, tão simples mas tão difícil de aceitar, do grão de trigo, que tem de morrer para dar fruto (Jo 12-24). Estou em crer, aliás, que quem o faça, não tem de esperar pela outra vida para ver esses frutos.
E portanto, a única resposta ao ruído de quem acha que as pessoas (e portanto também as crianças) se reduzem a um processo psíquico ou psicológico (contra o que nos preveniu Bento XVI, Carta Encíclica Caridade na Verdade, p. 76); ou a quem olha com desesperança para o futuro desta geração, só porque vive em aperto financeiro; a única resposta é repetir a mensagem essencial, a partir do coração do Evangelho, e dizer com simplicidade, como se diz no salmo 126/127, que “os filhos são uma bênção do Senhor” – título, e mote, de uma bela carta pastoral que D. Anacleto Oliveira, bispo de Viana do Castelo, recentemente publicou.
Penso que quem reflecte sobre o que é ter um filho percebe o dom gratuito, que nos transcende, que ele representa; de tal forma é evidente que uma tal criação é tão magnífica que não pode ter resultado só de nós, mas de alguém que nos ama. E penso que quem o perceba, conseguirá encontrar a força para responder a essa dádiva com a dádiva da sua própria vida. E por sua vez, o filho que recebe essa dádiva conseguirá encontrar a força para cumprir o quarto mandamento e honrar os seus pais, e para dar a sua vida, em devido tempo, pelos seus próprios filhos. 
E nessa altura – também aí reside um mistério – um pai pode dar-se pelos filhos das formas mais diversas: a dar aulas, a escrever poemas ou a fazer biscoitos. O que Deus pede é que nos demos uns aos outros o melhor que pudermos, e não que façamos coisas vistosas ou bonitas, ou que tenhamos ideias impressionantes, que depois não concretizamos. Como disse Bento XVI no provocador desafio que deixou ao mundo da cultura, na visita que fez a Portugal em 2010: fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza (Papa Bento XVI em Portugal, Paulinas, 2010, p. 44). É fazendo das nossas vidas lugares de beleza que tudo o resto pode surgir. Ou como também escreveu, há muito mais tempo, o nosso Santo António de Lisboa: “Quando a sabedoria exterior corresponde proporcionalmente ao sabor da consciência e a eloquência à vida, há um concerto de música. Quando a língua não remorde na vida, doce é a sinfonia.” (Fontes Franciscanas, III – S. António de Lisboa, III volume, 190)


Miguel Assis Raimundo
  


Lisboa, 13 de Maio de 2015

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